Uma experiência que desafia as convenções modernas dos jogos de aventura

Em uma era onde waypoints e marcadores guiam cada passo do jogador, Hell is Us surge como um manifesto contra a “assistência intrusiva” que domina os games modernos. Este ambicioso projeto da Rogue Factor, liderado pelo veterano Jonathan Jacques-Belletête (Deus Ex), não apenas remove essas muletas digitais, mas constrói toda sua experiência ao redor da filosofia “Player-Plattering” – um conceito que devolve ao jogador a responsabilidade de observar, deduzir e descobrir.
Uma proposta ousada de design
Desde o primeiro momento, Hell is Us deixa suas intenções claras: não haverá mapa detalhado, não haverá setas brilhantes. Sua jornada como Rémi – um protagonista em busca de suas origens no país fictício de Hadea, devastado por guerra civil – depende inteiramente de sua capacidade de prestar atenção aos diálogos, observar o ambiente e conectar pistas espalhadas pelo mundo.
Esta abordagem não é mero capricho nostálgico. É uma resposta direta ao que os desenvolvedores identificaram como um problema crescente: jogadores que pulam diálogos porque sabem que um marcador os guiará automaticamente ao destino. Aqui, cada conversa importa, cada documento encontrado pode conter a chave para seu próximo objetivo.
O tablet inspirado no PalmPilot torna-se seu companheiro mais valioso, organizando informações em fragmentos chamados “datum”. Quando um NPC menciona “os pântanos a oeste” ou um diário fala de “ruínas atrás da cascata”, essas não são apenas descrições atmosféricas – são direções literais que você precisa interpretar e seguir.
Narrativa densa e atmosfera envolvente

A história de Hell is Us funciona em múltiplas camadas. O que começa como uma busca pessoal de Rémi por suas origens rapidamente se entrelaça com o mistério da “Calamidade” – o surgimento de criaturas bizarras que lembram lápides e monumentos antigos. Essas entidades, chamadas Hollow Walkers, são representações físicas de emoções humanas intensas, conectadas por “cordões umbilicais emocionais” a manifestações etéreas conhecidas como Hazes.
É uma premissa que poderia facilmente descambar para o pretensioso, mas a narrativa mantém-se equilibrada entre o drama pessoal e o horror sobrenatural. A decisão de ambientar a história nos anos 1990, em um país fictício mas claramente inspirado nos conflitos da época, adiciona camadas de realismo que tornam o fantástico mais palatável.
Importante destacar que, embora o jogo trate de guerra civil e violência, Rémi nunca enfrenta outros humanos em combate – uma escolha deliberada para não contribuir com o “ciclo de brutalidade humana” que o jogo critica.
Combate estratégico, não punitivo
Contrariando impressões iniciais baseadas nos trailers, Hell is Us definitivamente não é um soulslike. O sistema de combate é “midcore” – oferece desafio significativo sem ser punitivo. A barra combinada de vida e stamina reflete uma lógica realista (inspirada na experiência de boxe do diretor criativo), mas mecânicas como o Lymbic Pulse – que permite recuperar vida ao causar dano sem ser atingido – mantêm o ritmo dinâmico e evitam loops negativos frustrantes.
As quatro famílias de armas (machados duplos, espadas de uma/duas mãos e lanças) oferecem estilos de combate distintos, todas upgradáveis com poderes especiais. O drone KAPI adiciona uma camada tática interessante, podendo distrair inimigos, elevar Rémi para ataques aéreos ou traduzir inscrições antigas.
A dificuldade é altamente customizável – desde ajustes de dano até uma opção “Penalidade por Morte” para veteranos que querem ressuscitar inimigos derrotados e perder XP/itens ao morrer.
Aspectos técnicos e apresentação
Rodando em Unreal Engine 5, Hell is Us impressiona visualmente, especialmente em hardware AMD otimizado com suporte para FSR 4. A tecnologia HDR10+ GAMING oferece calibração automática cena a cena em monitores compatíveis, criando uma experiência visual notável.
A trilha sonora, composta internamente por Stéphane Primeau, merece destaque especial. Assim como as dublagens em inglês e francês, gravadas nos próprios escritórios da Rogue Factor, ela contribui significativamente para a atmosfera densa do jogo.
Os requisitos de PC são robustos (mínimo de GTX 1070/RX 5600 XT com 16GB RAM), mas justificáveis dados os visuais entregues. A otimização para AMD é particularmente notável, refletindo a parceria técnica entre as empresas.
Dungeons e exploração profunda
As dungeons antigas espalhadas por Hadea representam alguns dos melhores momentos do jogo. Cada uma possui atmosfera, desafios e significado únicos, culminando em confrontos intensos que revelam aspectos da história tortuous da região. Seguindo a filosofia player-plattering, essas áreas exigem observação cuidadosa do ambiente para navegação e resolução de puzzles.
Limitações e considerações
Hell is Us não é um jogo para todos. Sua proposta hardcore não vem da dificuldade do combate, mas da demanda intelectual que impõe. Jogadores acostumados com guidance constante podem se sentir perdidos inicialmente.
Alguns problemas técnicos menores foram identificados durante o período de avaliação, incluindo um bug na cena final que pode afetar a resolução do modelo do Rémi. São questões que não comprometem a experiência core, mas merecem atenção em patches futuros.
O preço premium também pode ser uma barreira para jogadores indecisos. Este é claramente um produto de nicho, direcionado a um público específico que valoriza o desafio intelectual sobre conveniência.
Veredicto final
Hell is Us é exatamente o que promete ser: um retorno às raízes dos jogos de aventura, respeitando a inteligência do jogador acima de tudo. É um título corajoso que não faz concessões às tendências atuais da indústria, preferindo criar uma experiência genuinamente única.
Para jogadores que sentem falta da sensação de descoberta real, que gostam de fazer anotações e mergulhar profundamente em mundos ficcionais, Hell is Us oferece uma experiência rara e valiosa. É um jogo que permanece na mente mesmo após desligar o console – exatamente como a equipe da Rogue Factor planejou.
No entanto, sua natureza nicho significa que nem todos apreciarão sua abordagem não-convencional. É um título que divide opiniões por design, e isso não é necessariamente um defeito.
Hell is Us prova que ainda há espaço para experiências que desafiam o status quo, oferecendo algo “realmente diferente e novo”.
Está disponível para PlayStation 5, Xbox Series X|S e PC (Steam, Epic Games Store).